Terapia do esquema: um novo enfoque cognitivo

03/08/2010 14:02

 

Nova abordagem propõe o aperfeiçoamento do modelo padrão para o tratamento de transtornos da personalidade

 

Por Marco Aurélio Mendes

 

 A Terapia Cognitivo-Comportamen­tal (TCC) vem ganhando cada vez mais espaço no campo acadêmico e terapêutico. Em função de sua objetividade e eficácia, observa-se um interesse crescen­te tanto por parte dos profissionais da área de saúde como pelo público em geral. Em alguns casos, como no transtorno obsessi­vo-compulsivo (TOC), a terapia associada à intervenção medicamentosa se tornou o tratamento-padrão, sendo bastante comum a procura específica por esse tipo de proce­dimento por parte dos próprios portadores. Inicialmente restrita aos casos de depressão, fobias e pânico, a TCC vem expandindo sua área de atuação, abrangendo desde os casos já citados até terapia de casais, de família e a esquizofrenia (BECK, 1997).

No entanto, em relação aos transtor­nos de personalidade, essa eficácia citada não foi observada dentro da prática clíni­ca. Esse fato contribuiu para novas adap­tações da teoria cognitiva, resultando em uma maior ênfase no conceito de esque­mas. Perris (2000) propõe uma divisão de gerações dentro da terapia cognitiva. Enquanto a primeira geração seria orien­tada para o aqui e o agora, incluindo o estabelecimento de metas e tarefas e atin­gindo níveis mais superficiais da estrutura da personalidade do indivíduo, a segunda, teria um foco no desenvolvimento e na manutenção dos esquemas, especialmente os formados na primeira infância.

A proposta da Terapia do Esquema (TE) de Jeffrey Young é justamente aper­feiçoar o modelo cognitivo com o objetivo de criar novas estratégias de tratamento para os transtornos de personalidade e também para os pacientes mais crônicos, mais rígidos e que não respondem bem ao tratamento cognitivo padrão. Para isso, a TE utiliza elementos provenientes de abordagens distintas como a Gestalt-terapia, a Psicodinâmica, conceitos da teoria do apego além, é claro, da própria teoria cognitiva tradicional proposta por Aaron Beck e seguidores.

 

CONCEITO E PERSONALIDADE

Os indivíduos com os chamados trans tornos de personalidade apresentam padrões disfuncionais rígidos, inflexíveis, profundos e raramente buscam a psicoterapia. Em geral, o paciente chega ao tratamento por imposição de terceiros como o cônjuge e a família ou quando seu comportamento passa a afetar de maneira drástica os relacionamentos pessoais e pro fissionais. Na verdade, ele não sente esses traços de personalidade como disfuncionais; parecem certos aos seus olhos, resultando daí a tendência em recusar qualquer tipo de ajuda ou mudança.

Os traços disfuncionais fazem parte da própria construção da personalidade e da identidade do indivíduo. Em casos assim, a objetividade da qual se reveste a terapia cognitiva tradicional, com a definição de problemas a serem tratados e metas a serem alcançadas, muitas vezes perde o sentido, pois o paciente pode trazer questões mais amplas e difusas como uma sensação de vazio, com as dificuldades se espalhando por diversas áreas da vida e de seus relacionamentos e uma falta de motivação para o engajamento no processo terapêutico.

O conceito de esquema proposto por Beck é central dentro da Terapia Cognitiva. Podemos considerá-lo como estruturas cognitivas que codificam, avaliam e interpretam, impondo um padrão de percepção da realidade, numa espécie de filtro cognitivo. Young (2003) não propõe um outro conceito de esquema, apenas enfatiza o que considera um nível mais “profundo” de cognição: os esquemas que vão aparecendo na infância e que foram chamados por ele de Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs). Esses estariam no centro dos transtornos de personalidade, sendo mais rígidos e difíceis de ser modificados. São basicamente resultantes de necessidades emocionais centrais para a criança que de alguma forma não foram atendidas, como a necessidade de um apego seguro, de afeto, carinho, estabilidade, das noções de autonomia e competência, de liberdade para expressão das emoções, da espontaneidade, do brincar e de limites adequados.

Os EIDs acabam constituindo o núcleo do autoconceito e da concepção de mundo do indivíduo, sendo a mudança, portanto, vista como ameaçadora. Apesar de se desenvolverem precocemente, os EIDs vão sendo elaborados durante toda a vida, podendo ser derivados de experiências negativas regulares e constantes, não precisando, necessariamente, de um evento traumático. Assim, como o conceito de modelos operacionais do psicanalista e etologista inglês John Bowlby, a criança desenvolve expectativas resultantes da natureza de suas relações com as figuras de apego. Esses modelos ajudam a interpretar e a manter uma consistência das cognições acerca do mundo interno e externo.

Festinger propôs em sua Teoria da Dissonância Cognitiva que procuramos sempre um estado de harmonia em nossas cognições. Young (2003) afirma que devido à consistência cognitiva, os EIDs lutam para permanecer vivos. Como o comportamento e o caráter do indivíduo são guiados por ele, muitas vezes esse modo de ser é tudo o que ele conhece para se estabelecer nas relações com as mais diversas áreas de sua vida. Os esquemas seriam algo quase in questionável, sendo uma verdade, a priori, natural. Por mais que sejam disfuncionais para os outros, são familiares ao indivíduo, podendo fazer com que sejam recriadas na vida atual condições semelhantes às que foram “nocivas” na infância e participaram da geração desses esquemas. Uma mulher que tenha passado por experiências constantes de rejeição e desamparo pode, por meio de um mecanismo de manutenção do esquema, escolher um relacionamento afetivo que reproduza a mesma situação.

Os EIDs, apesar de serem inicialmente adaptativos, acabam deixando de ter um caráter transitório para se tornarem um padrão de comportamento, envolvendo não apenas as cognições como também as memórias afetivas, corporais e as emoções. Young (2003) descreve 18 esquemas principais, sendo que um ou mais estarão em diferentes transtornos de personalidade (Veja o tópico Diferentes domínios).

 

COPING STYLES

As formas de resposta à ameaça, são basicamente de três tipos em todos os organismos: luta, fuga ou congelamento. No contexto da infância, um EID representa também uma ameaça, que é caracterizada pela frustração das necessidades emocionais da criança. Podemos classificar então, três estilos de manejo (coping styles) para lidar com os esquemas: supercompensação, evitação e rendição.

A supercompensação é um conceito similar à formação reativa, com o indivíduo se com portando e pensando de maneira exatamente oposta à do momento ou período de aquisição do esquema. Uma pessoa com um EID de fracasso e com um estilo de supercompensação pode desenvolver uma estratégia de não-aceitação de suas falhas, não admitindo a crítica. Na evitação, o paciente se afasta das situações que possam deflagrar os EIDs, seja por meio da evitação comportamental, cognitiva ou afetiva. Aqui também há uma sobreposição com o conceito psicanalítico de mecanismos de defesa como a repressão, supressão e negação (YOUNG, 2003). Um indivíduo com um EID de abandono pode evitar relacionamentos afetivos mais íntimos com o objetivo de se manter distante do perigo de ser abandonado ou rejeitado pela figura amada.

Na rendição ou submissão, o indivíduo “se entrega” aos esquemas, aceitando-os como verdadeiros e inquestionáveis. São comuns aqui, o uso das chamadas distorções cognitivas como a desqualificação do positivo, a supergeneralização e abstração seletiva. Uma pessoa com um esquema de privação emocional e um estilo de submissão pode escolher como parceiro alguém que irá tratá-la de forma fria e distante, mantendo esse padrão.

Cabe aqui fazer uma distinção importante entre o esquema em si e as estratégias utilizadas pelo indivíduo para lidar com o mesmo. O comportamento não é o esquema e, sim, a maneira utilizada pelo paciente para lidar com ele. As estratégias de coping, ou aquelas utilizadas para lidar com o esquema, não são necessariamente as mesmas nas diferentes situações e mo mentos da vida da pessoa; ao contrário do esquema, que permanece estável.

 

PROCESSO TERAPÊUTICO

A Terapia do Esquema (TE) se divide em duas fases: (1) avaliação e conceituação do caso e (2) mudança do esquema (YOUNG, 2003). Nesse primeiro mo mento, destaca-se a importância da relação terapêutica para o processo de tratamento, com uma influência clara dos conceitos de Bowlby sobre o apego.

A teoria do apego afirma que temos, assim como outros animais, mecanismos pré-programados, instintuais, que buscam o estabelecimento de uma relação segura e estável com as figuras cuidadoras, resultante de respostas instintuais que visam ligar o par mãe/bebê, tendo como objetivo a defesa contra quaisquer estímulos ameaçadores do meio. Young compreende, como um dos principais papéis do terapeuta, oferecer estabilidade e segurança que pode ter faltado ao pa ciente na infância, fornecendo uma base segura, dentro dos limites adequados para essa mesma relação. Ainda na fase inicial, o terapeuta auxilia o paciente a entender o modelo terapêutico, o conceito de esquemas, a identificar os EIDs, relacioná-los aos problemas do presente e a compreender as suas origens no passado. Também são identificados aqui os estilos de coping e as estratégias utilizadas pelo paciente para lidar com os esquemas na sua vida cotidiana, bem como as situações que deflagram os mesmos. Podem ser aplicados inventários com o objetivo de confirmar e identificar esquemas como o Questionário de Esquemas de Young (YQS) e também tarefas de casa que auxiliem tanto o terapeuta quanto o paciente nesse processo de identificação.

Após o estabelecimento de uma relação terapêutica adequada e a identificação dos esquemas, o terapeuta pode utilizar técnicas experienciais para deflagrar os esquemas dentro da própria sessão terapêutica como a utilização de relatos de imagens mentais do paciente, sejam espontâneas ou de cenas sugeridas pelo próprio terapeuta, uma vez que acredite que esta imagem esteja relacionada a algo que deflagre o esquema. Filmes, livros, sonhos, enfim, atividades cotidianas também podem ser utilizadas com o mesmo objetivo dos procedimentos anteriores: realizar uma conceituação do caso que pode ir se refinando no decorrer do processo terapêutico.

A segunda fase mencionada por Young é a de mudança do esquema. Essa fase apresenta intervenções cognitivas, comportamentais, experienciais e inter pessoais, sempre com o objetivo de auxiliar o paciente a observar e a combater as distorções originadas pelos EIDs. Geralmente, começa-se pelas intervenções cognitivas que podem incluir os tradicionais registros de pensamentos automáticos, de identificação de distorções cognitivas, a construção e o uso de cartões que contradigam os esquemas. Lembrando que um esquema envolve não apenas cognições como também sensações fisiológicas, memórias afetivas e corporais, as técnicas experienciais têm como objetivo deflagrar o esquema dentro da sessão terapêutica, permitindo a expressão dos sentimentos e das emoções do paciente. Técnicas gestálticas como a criação de diálogos imaginários, de representação de papéis, de imaginação visual e de catarse emocional podem ser utilizadas com esse objetivo. Em relação às técnicas interpessoais, uma vez que os esquemas do paciente são ativados na ligação com o terapeuta, a relação terapêutica é mais uma vez realçada, auxiliando na identificação destes padrões, bem como numa relação que traga ao paciente aquilo que lhe faltou quando da criação dos seus EIDs. É o que Young chama de limited reparenting.

Já a intervenção comportamental é a parte final do tratamento, o que não significa que algumas alterações comportamentais não possam ter sido sugeridas antes dessa etapa, ou mesmo já na primeira fase do tratamento. A mudança de comporta mento proposta é uma verdadeira quebra dos padrões do paciente. Uma vez que ele já conhece os seus EIDs, seu desenvolvimento e suas estratégias de respostas e reações aos mesmos pode agora se distanciar desses esquemas, questionando-os e assumindo comportamentos mais saudáveis.

Apesar das fases e etapas do tratamento estarem delineadas, o terapeuta deve se preparar para enfrentar possíveis resistências do paciente em executar tarefas que impliquem em uma participação mais colaborativa no processo terapêutico. Nesse sentido, não há uma rigidez excessiva em relação às técnicas, abrindo espaço para uma maior criatividade do terapeuta na condução do processo.

Em função das dificuldades no tratamento de pacientes com transtornos de personalidade, a abordagem dos esquemas teve um forte impacto dentro da terapia cognitiva. Além de Young, o próprio Beck revisou o modelo cognitivo tradicional para o trata mento desses pacientes mais difíceis. Mais do que uma revolução na teoria, observa-se uma mudança de foco levando à chamada segunda geração de terapias cognitivas. A busca pelos esquemas iniciais desadaptativos e crenças mais centrais, sua origem e seu fortalecimento no desenvolvimento do indivíduo, a ênfase na relação terapêutica e a necessidade de construção de uma relação sólida e estável que seja também um instru mento de mudança podem levar a um aumento maior no tempo de tratamento em comparação com a TCC convencional. Perris (2001) chama a atenção para o fato de a Terapia do Esquema estar sendo usada de maneira incorreta em alguns casos, em pacientes que não se enquadram no conceito de uma excessiva rigidez à mudança e de transtornos de personalidade e que, portanto, poderiam se beneficiar mais rapidamente com a prática da TCC tradicional.

 

DIFERENTES DOMÍNIOS

Os 18 Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs) descritos por Young (2003) agrupam-se em cinco categorias amplas, chamadas por ele de Domínios de Esquema e que correspondem às necessidades não atendidas da criança em seu período de desenvolvimento. São eles:

1 - Desconexão e rejeição: ligado às falhas de vinculação segura com o outro, de carinho, de estabilidade, da maternagem em geral. Forte dificuldade no estabelecimento de relações afetivas saudáveis. Os esquemas ligados a este domínio são os de abandono/instabilidade, desconfiança/abuso, privação emocional, vergonha, isolamento social/ alienação. Em função de seu desenvolvimento precoce, esses esquemas são bastante difíceis de ser acessados.

2 – Autonomia e desempenho prejudicados: os indivíduos não conseguem desenvolver um senso de confiança, de se estabelecer no mundo por si mesmo, possuindo geralmente famílias super protetoras que, na tentativa de proteger a criança, acabam não reforçando a sua autonomia. Os esquemas aqui envolvidos são os de dependência/incompetência, vulnerabilidade, emaranhamento/self subdesenvolvido, fracasso.

3 – Limites prejudicados: ligado às falhas na aplicação de limites realistas, na capacidade de seguir regras e normas, de respeitar os direitos de terceiros e de cumprir as próprias metas pessoais. O egoísmo é a principal característica desses indivíduos, sendo a família geralmente permissiva. Dentro desse domínio estão merecimento/grandiosidade e autocontrole/autodisciplina insuficiente.

4 – Orientação para o outro: com o objetivo de ganhar aprovação e evitar retaliação, os pacientes nesse domínio têm uma ênfase excessiva no atendimento dos desejos e necessidades do outro, às custas das suas próprias necessidades. A família de origem geralmente estabelece uma relação de amor condicional, ou seja, a criança só recebe atenção e aprovação se ela suprime sua livre expressão e se comporta da maneira desejada. Os esquemas aqui envolvidos são os de subjugação, auto-sacrifício, busca de aprovação/reconhecimento.

5 – Supervigilância e inibição – em função de uma educação rígida, repressora, na qual não houve possibilidade de expressar suas emoções de maneira livre, os indivíduos com esquemas ligados a esse domínio são geralmente tristes e introvertidos, com regras internalizadas excessivamente rígidas, autocontrole e pessimismo exagerados e uma hipervigilância para possíveis eventos negativos. Os esquemas que aqui se apresentam são: negativismo/pessimismo, inibição emocional, padrões inflexíveis, caráter punitivo.

Young (2003) afirma também que o temperamento inato da criança tem relevância na maneira como os EIDs se estabelecem.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BECK, J. Terapia cognitiva: teoria e prática. Porto Alegre: Artes Médicas, (1997).

JAMES, I. Schema Therapy: the next generation, but should it carry a health warning? Behavioural and Cognitive psychotherapy. 2001, 27, 401-407.

PERRIS, C. Personality-related disorders of interpersonal behavior: A developmental - constructive cognitive psychotherapy approach to treatment based on attachment theory. Clinical Psychology and Psychotherapy. 2000, 7, 97-117.

YOUNG, J. Terapia cognitiva para transtornos de personalidade: uma abordagem focada nos esquemas. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.

YOUNG, J.; KLOSKO,J.S.; WEISHAAR, M.E. Schema therapy: a practitioner’s guide. New York : The Guilford Press, 2003.

 

Artigo retirado da revista: PSIQUE Ciência e Vida

Disponível em:  www.nunap.com.br/artigos/terapia_do_esquema.pdf 

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